Você foi pego por uma oferta irresistível de férias – aquele “resort” com promessa de lucro, uso fácil e valorização automática. Na apresentação, a pressão foi intensa, e você assinou algo sem ler tudo. Só depois, ao pagar mensalidades altas ou ver que o retorno nunca viria, percebeu que entrou numa armadilha.
Agora quer sair, mas descobre que as penalidades são enormes — multa de até 50%, retenção da “comissão de corretor” e devolução irrisória.
Este artigo vai mostrar:
- como essas vendas costumam ser estruturadas (com gatilhos psicológicos e omissões),
- onde o contrato costuma se aproveitar do consumidor,
- o que a lei e a jurisprudência já dizem sobre distratos abusivos,
- e qual é a estratégia para buscar uma rescisão justa ou até a devolução integral dos valores pagos.
Se você já está em processo ou está pensando em aderir a esse tipo de contrato, este guia é para você. Vamos lá.
- O que é multipropriedade / “resort compartilhado” e por que gera riscos
Multipropriedade é uma modalidade em que várias pessoas possuem cotas (frações) de tempo/uso de um imóvel (resort, condomínio de férias etc.), regulada pela Lei nº 13.777/2018 (Lei da Multipropriedade).
Essa estrutura pode ser legítima, mas o problema quase sempre está na comercialização abusiva:
- Vendedores habilidosos usam gatilhos de escassez, promoções limitadas, ofertas “imperdíveis”, para induzir decisão rápida e emocional.
- Muitas vezes, o contrato não é entregue antes da assinatura — o consumidor não tem tempo de ler com calma.
- Prometem que o empreendimento “se paga sozinho” por meio de locação (pool, arrendamento, sistema de gestão), sem deixar claro os riscos e custos envolvidos.
- Inserem cláusulas que dificultam efetivo uso da cota (necessidade de reserva com muita antecedência, calendário rígido, restrições de datas, sistema de “rankings” para acessar semanas melhores etc.).
Quando o consumidor percebe que o negócio não compensa, quer sair — mas descobre cláusulas desenhadas para pescar lucro da retenção ou multa.
- Porque o consumidor geralmente está em desvantagem no contrato
Esses contratos são quase sempre de adesão — ou seja, você não negocia cláusulas. O fornecedor impõe o modelo. Isso abre margem para cláusulas que favorecem quem vende, prejudicando sempre o consumidor que simplesmente assina o contrato, na maioria das vezes sem tempo de ler o documento. Algumas práticas abusivas típicas:
- Multa rescisória exorbitante: 50% do que foi pago. Essa cifra mira intimidar o consumidor a desistir do distrato.
- Tratamento da “entrada” como sinal ou comissão do corretor, sem separação clara: em vez de ser apenas adiantamento de pagamento, o contrato pode rotular isso como comissão ou “sinal”, de forma que o consumidor não consegue recuperação plena.
- Cobrança de comissão de corretagem embutida ou destacada: mesmo que você não tenha escolhido ou negociado o corretor, pode existir cláusula que retenha essa comissão.
- Multas e encargos cumulativos: cláusulas que combinam multa, taxa de fruição, encargos condominiais e outras penalidades, tudo acumulado, sem justificativa clara.
- Ausência de transparência ou clareza na cláusula de distrato: não detalham como calcular o valor devolvido, quais deduções serão feitas, prazos etc.
- Vínculo longo demais: prazos extensos de pagamento ou de obrigação de permanência, tornando difícil “virar a página” mesmo se a situação financeira mudar.
- Cláusulas que restringem ou dificultam uso da cota: impedem o consumidor de usufruir plenamente, gerando frustração e justificando depois retenções sob alegação de baixo uso.
Essas cláusulas muitas vezes ferem o dever de informação, a boa-fé objetiva e o princípio da transparência, previstos no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Além disso, a multipropriedade, mesmo sendo negócio imobiliário, não exclui a relação de consumo — tribunais já reconhecem que esse contrato está sujeito ao CDC, porque há fornecedor, consumidor e prestação de serviço/benefício ofertado.
- Legislação aplicável e limites à multa rescisória
3.1 Lei do Distrato (Lei 13.786/2018)
A Lei do Distrato tentou regularizar como funcionará a rescisão de contratos imobiliários, inclusive em incorporações. Algumas regras:
- Estabelece limites para retenção de valores em distratos (quando o comprador desiste) — em geral, até 50% do valor pago, dependendo do estágio da obra / incorporação.
- Impõe prazos para devolução dos valores já pagos (normalmente 180 dias), em caso de distrato.
- Mas a Lei do Distrato não foi pensada originalmente para todos os casos de multipropriedade com todas as particularidades de clubes de férias ou resorts compartilhados, o que gera discussões judiciais.
Embora a Lei permita retenção de até 50%, esse percentual não é absoluto: ele deve respeitar os princípios do direito do consumidor (não pode ser abusivo) e a possibilidade de revisão judicial com base no art. 413 do Código Civil (cláusula penal excessiva).
3.2 Código de Defesa do Consumidor (CDC)
O CDC é uma “superestrutura” normativa (ordem pública) que protege o consumidor contra cláusulas abusivas e práticas comerciais agressivas:
- Art. 6º, inciso V — revisão de cláusulas que estabeleçam vantagem exagerada ao fornecedor.
- Art. 51, inciso IV — declaração de nulidade de cláusulas que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada”.
- Art. 46 — determina que contratos só produzem efeitos se o consumidor tiver oportunidade de conhecer seu conteúdo antes da contratação.
- Art. 39, incisos: proíbe prática coercitiva ou limitativa da liberdade de escolha.
- Princípios como transparência e equilíbrio contratual também se aplicam.
Portanto, mesmo que o contrato contenha multa de 50%, isso não impede que um juiz a declare abusiva ou determine redução, caso entenda que ela impõe desvantagem exagerada.
3.3 Jurisprudência recente (2025)
A jurisprudência já tem inúmeras decisões relevantes no campo da multipropriedade que favorecem o consumidor, ou pelo menos reduzem abusos. Alguns exemplos:
- Há decisões que reduzem a multa para 25% do valor pago, por considerar 50% abusivo, mesmo nos casos previstos pela Lei do Distrato.
- Em um caso, o Tribunal de Justiça do Paraná reconheceu que cláusula de retenção de 50% em contrato de multipropriedade era abusiva e determinou a retenção de apenas 25%. JusBrasil
- Em muitos casos, os tribunais afastam a retenção da comissão de corretagem, por entender que ela não está suficientemente destacada ou justificada no contrato, conforme o Tema 938 do STJ.
- Há decisões que rescindem o contrato sem multa quando constatada falha grave na prestação de informação, coerção na venda ou omissão significativa de cláusulas.
- Um caso recente: uma juíza no Espírito Santo anulou contrato de multipropriedade e determinou a devolução integral dos valores pagos + indenização por danos morais de R$ 4 mil, diante de cláusulas abusivas e falta de transparência. Migalhas
- Outro: o TJDF declarou nulidade do contrato e devolução integral, por venda forçada sob pressão psicológica e omissão (não entrega do contrato antes do pagamento). REIS ADVOCACIA
- Em vários casos, juízes fixaram retenção de apenas 10% como quantia razoável para cobrir despesas administrativas, rejeitando retenções maiores como abusivas.
Esses precedentes mostram que o Judiciário já tem tendência a mitigar ou anular cláusulas excessivas, especialmente em contratos de multipropriedade.
- Como identificar as cláusulas abusivas no seu contrato
Antes de entrar com ação ou requerer rescisão, é essencial mapear o contrato e identificar os pontos vulneráveis. Veja o que você deve observar:
| Cláusula / Situação | O que verificar / questionar | Motivação para contestar |
| Multa rescisória | percentual aplicado e como se calcula (sobre valor pago, parcelas, saldo ou total) | se muito alta ou sem correlação real com prejuízo |
| Comissão de corretagem | se está destacada, expressa, clara e se foi justificada | retenção oculta viola direito de informação |
| Prazo e forma de devolução dos valores pagos | prazo exato, correção monetária, forma de pagamento | prazos longos ou devolução parcelada podem ser abusivos |
| Taxa de fruição / uso / ocupação | cláusulas que cobram uso mesmo sem uso efetivo ou quando imóvel não está entregue | cobrar taxa sem justificativa fere equilíbrio |
| Condições de reserva / calendário / bloqueios de uso | restrições excessivas, fases de hierarquia, escalonamento injusto | essas restrições podem tornar o contrato ilusório |
| Publicidade e promessas de retorno | promessas de rendimento ou valorização rápida que não estão no contrato | podem configurar propaganda enganosa |
| Falta de entrega prévia do contrato para leitura | se você assinou antes de receber o texto completo | desrespeita art. 46 do CDC |
| Cláusulas cumulativas | somar multa + encargos + taxas + penalidades adicionais | cumulatividade sem justificativa plausível é suspeita |
Se você identificar várias dessas falhas, há boa chance de conseguir uma rescisão favorável — ou, ao menos, redução significativa das retenções.
- Estratégia prática para distrato ou rescisão judicial
5.1 No prazo de arrependimento (7 dias)
Se o contrato foi assinado fora do estabelecimento comercial (ex: estande de vendas, evento, viagem, apresentação de resort), o art. 49 do CDC garante ao consumidor 7 dias para se arrepender sem penalidade e exigir devolução integral dos valores pagos.
Se seu contrato se encaixa nesse cenário, pode pedir distrato com restituição integral — mas é necessário agir rapidamente.
5.2 Tentativa de acordo extrajudicial
Antes de ajuizar ação, você pode:
- Notificar extrajudicialmente a empresa, exigindo rescisão com restituição, alegando cláusulas abusivas, publicidade enganosa ou vício de consentimento.
- Solicitar cópia integral e legível do contrato, memoriais de cálculo para restituição, taxas cobradas etc.
- Negociar redução de multa e retenções; muitas vezes as empresas preferem acordo com retenção menor do que ter que enfrentar judicialmente.
- Se conseguir acordo, formalize por escrito (termo de distrato) com cláusula de quitação.
5.3 Ação judicial — principais pedidos e fundamentos
Se o acordo não for possível ou não satisfatório, o caminho é levar à Justiça. Os pedidos mais comuns são:
- rescisão/declaração de nulidade do contrato (ou do distrato unilateral da empresa)
- restituição integral ou parcial dos valores pagos, corrigidos monetariamente
- redução da multa rescisória (ou sua declaração de abusiva / nula)
- indenização por danos morais, se houver sofrimento ou frustração demonstrada
- tutela de urgência ou liminar para suspender cobranças, parcelas, ou bloquear negativação enquanto o processo segue
- imposição de correção monetária e juros legais sobre os valores devidos
5.4 Provas são essenciais
Para vencer, dependerá de provas bem organizadas:
- Registro ou filmagem da apresentação / venda
- Panfletos, e-mails, mensagens, gravações de áudio
- Testemunhas que presenciaram o momento da assinatura
- Contrato, propostas, planilhas, cálculos de pagamentos
- Comparativos entre o que foi prometido oralmente e o que consta no contrato
- Provas de que a empresa dificultou acesso ou alterou condições posteriormente
Quanto mais robusto o conjunto probatório, maior chance de convencer o juiz a declarar cláusulas abusivas ou até rescindir sem ônus.
- Situações extremas: devolver 100% do dinheiro
Em casos mais graves, algumas decisões já resultaram em:
- rescisão com devolução integral dos valores pagos, sem retenção alguma — isso quando a empresa agiu de modo abusivo, omissivo, enganoso ou sem permitir que o consumidor conhecesse o contrato antes da assinatura.
- indenização por danos morais — diversas decisões reconhecem que a frustração, o sentimento de engano ou de ter sido coagido podem gerar dano moral. Por exemplo, no caso do Espírito Santo foi fixada indenização de R$ 4 mil. Migalhas
- anulação de cláusulas de comissão de corretagem, quando estas não estavam devidamente informadas ou destacadas.
Esses casos mostram que o Judiciário reconhece: quando as práticas da empresa são abertamente desleais, não há motivo para o consumidor arcar com perdas excessivas.
- Exemplificação fictícia para ilustrar (caso hipotético)
Imagine um contrato de multipropriedade no “Resort X”:
- Entrada paga: R$ 4.000 (que o contrato rotula como “comissão do corretor”)
- Pagamentos mensais por 20 anos
- Cláusula de multa rescisória de 50% sobre valores pagos
- Cláusula de taxa de fruição, encargos de reserva, limitações de uso elevadas
Você paga durante 3 anos e percebe que não consegue reservar datas, o sistema pool nunca gera renda ou é altamente restrito. Decide rescindir.
Se o contrato fosse típico, a empresa diria: “retenção de 50% + comissão + encargos — você vai receber pouco ou quase nada”.
Mas, com base nas jurisprudências, um juiz poderia:
- reduzir a multa para 25% ou até 10% (dependendo do caso)
- afastar a retenção da “comissão do corretor” se ela estiver embutida sem destaque
- determinar devolução dos valores pagos (menos a retenção justa)
- impor correção monetária + juros
- se comprovado o abuso, rescindir com devolução integral e indenização
Ou seja: de “receber quase nada” você pode acabar recebendo boa parte do que pagou de volta, dependendo da força da prova e da gravidade das cláusulas abusivas.
- Dicas práticas para quem está nessa situação agora
- Não assine distrato sem assistência: se receber um documento da empresa para “rescisão”, leve para análise de advogado.
- Aja rápido: muitos prazos judiciais e possibilidade de notificar extrajudicialmente dependem de tempo.
- Colete provas imediatamente: e-mails, gravações, propostas orais, testemunhas, panfletos.
- Exija planilha de cálculo detalhada da devolução proposta — peça que o valor retido seja discriminado (multa, comissão, encargos etc.).
- Peça liminar/tutela de urgência para suspender cobranças e negativação enquanto o processo corre.
- Verifique se houve venda fora do estabelecimento — pode estar valendo o direito de arrependimento (7 dias).
- Procure precedentes semelhantes na sua comarca — decisões favoráveis de outros consumidores ajudam.
- Tenha paciência, pois casos contra grandes empresas costumam exigir recursos e tempo.
Conclusão
Os contratos de multipropriedade (resorts compartilhados) podem até ter fundamento legal, mas seu uso comercial frequentemente esbarra em práticas abusivas, cláusulas desequilibradas e vendas por pressão, que prejudicam o consumidor.
O “segredo” que muitas empresas não contam é que:
- a multa de 50% não é inviolável — ela pode ser reduzida judicialmente para 25%, 10% ou até ser anulada, se comprovada abusividade;
- a comissão de corretor pode não ser devida se não estiver destacada e explicada;
- em situações extremas, o contrato pode ser rescindido com devolução integral dos valores pagos;
- o consumidor lesado pode pedir danos morais, suspensão de cobranças, tutela de urgência e correção monetária.
Se você ou alguém que conhece está nessa situação, o conselho mais forte que posso dar é: procure um advogado especializado em direito imobiliário / consumidores e leve todo o contrato + provas ao profissional. A luta vale a pena — você pode reverter uma situação financeiramente danosa e recuperar o que foi pago com juros e correção.
Conclusão: Você não está sozinho — e seus direitos não acabaram com a assinatura
Entrar em um contrato de multipropriedade sem conhecer todos os riscos é mais comum do que parece. Muitas empresas se aproveitam da empolgação e da falta de informação para vender promessas que não estão no papel. Mas a boa notícia é que você tem direito de reagir, cancelar e até recuperar o que pagou, mesmo que o contrato diga o contrário.
O Judiciário brasileiro está cada vez mais atento aos abusos nesse tipo de negócio, e muitas decisões têm garantido a devolução dos valores pagos, redução de multas e até indenização.
Assinar um contrato não significa assinar sua derrota. Conhecer seus direitos é o primeiro passo para recuperar o que é seu por justiça — não por favor.


